1.3.10

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Singelos momentos

A última vez que vi suas costas assemelhava-se a gotas de orvalho, descendo pela folha levemente amarelada do início da primavera. Abaixo das pontas enegrecidas e dos curtos fios desciam algumas gotas, que a chuva insistira em molhar-lhe a cabeça, rumo ao chão quiçá; entretanto seu corpo demonstrava certo pesar, os passos não eram os mesmos de outrora, pareciam-me cansados da batalha cotidiana. Senti-me com certa parcela de culpa pelo seu estado, havia sido agravado por uma discussão anterior a uma brusca mudança em sua vida. 
Era difícil para mim, tanto quanto para aquela pessoa que por tanto tempo havia dividido comigo não somente os melhores momentos, como também os piores. Inevitável, o fim, assim como o começo o foi, mas o amadurecimento nos trouxe uma visão de mundo e realidade fantástica, e por esse mesmo motivo a decisão tomada nos parecia ser a mais adequada. Eu não pretendia voltar aos mesmos lugares, tampouco me comunicar com as pessoas de sempre, queria adaptar-me à nova condição que a vida me impusera. 
Doía-me saber que para alguém tão frágil, seria tanto mais difícil que para mim, mas o remédio era único: conformar-me ou talvez arrepender-me por todos os longos anos que me ainda restavam. Virei-me de costas, era doloroso em demasia ver o corpo diminuindo ao longo daquela longa reta. Tentei não reagir ao ouvir sua voz chamar o nome pelo qual somente aquele timbre chamava-me: em vão. Mais rápido quanto um olho pode piscar, meu pescoço transladou e eu vi aqueles olhos negros aproximando-se de mim, derramando lágrimas tão densas quanto as gotas que a chuva deixava cair do outro lado do saguão. 
“Perdoa-me por não ter mais forças, por não saber como lidar com tudo isso”, uma lágrima desceu-me pelo rosto ao ouvir seus lábios dizerem tais palavras após um abraço tão forte. Como em quase todos os dias de nossa vida conjugal em que turbulências nos ocorriam, afaguei-lhe a nuca e assoviei uma canção ao seu ouvido, até que suas lágrimas já não mais caíssem. Seu coração pulsava com ânsia de reviver tudo aquilo que as situações nos impuseram, sussurros, gritos, beijos, toques, lágrimas e machucados. Nada disso era suficiente para nos enegrecer o dia se tivéssemos mútuo apoio, mas como seria agora que nossos rumos se separavam de forma tão brusca? 
Tentei ser racional, afastar-me daqueles braços delicadamente desenhados, novamente em vão. Como separar-me daquele calor que me acalentava os pensamentos de medos e receios. Meus olhos pareciam mais cachoeira, de sua boca ouvi-lhe questionar se não seria justo conosco e com nossa história ao menos tentarmos, nem que fosse de uma forma tão longínqua uma continuidade aos nossos fatídicos dias de insanidade. Ri, uma gargalhada que há muito se fazia presa em minha garganta, ao separar seu corpo do meu olhou-me diretamente como que aguardando uma resposta concreta. 
Sorri e falei, que enquanto eu vivesse seria dela, mas que as circunstâncias atenuariam cada vez nossos problemas, talvez em um futuro próximo poderíamos continuar de onde paramos, desde fôssemos sinceras com nossos sentimentos e atitudes. Beijei-lhe a têmpora, como em tempos remotos o fiz, apertei com carinho seus braços e falei que a vida continuava. Virei-me ao escutar a última chamada para o meu vôo, para o meu futuro. 
T.E.



PS: Gente, como eu detesto contos em primeira pessoa! Ô coisa difícil, mas saiu! Ae o/
PS: Imagem feita pela gloriosa bakanekonei (:

25.8.09

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Sentiu por entre os dedos a ponta do cigarro queimar-lhe a pele. Foi desperta de seu devaneio matutino, sorriu e voltou-se para dentro da varanda. Agitou a mão esquerda, logo em seguida jogando o cigarro bem distante. A passos lentos entrou em casa, ao passo que um vento gélido lhe acompanhava. Segurou nas pontas do casaco fechando-o mais em seu corpo esguio, olhou para trás quase sem coragem de fechar a porta que permitia aquele vento de fim de inverno entrar. Soltou as mãos e puxou as maçanetas, antes que o vento trouxesse consigo a chuva para dentro do ambiente termicamente aconchegante.
Respirou fundo antes de sentar-se na poltrona e a girou, para poder visualizar em todo seu esplendor aquele espetáculo que tanto sentira falta. As gotas de chuva caíam como se mergulhassem nos vitrais da casa, atrás um sol nascente mesclado a delicados tons de azul e branco. As nuvens do horizonte eram belíssimas, quase como os tais algodões-doce que lembrava da infância. Puxou uma coberta grossa para cima de seu colo enquanto suas pernas se cruzavam em uma posição tão comum para ela.
Um sorriso desenhou-se em sua face ao sentir aquele doce aroma de capuccino exalando da cozinha, esticou o corpo e retorceu o pescoço para ver corretamente, sim. O cheiro vinha exatamente dali, junto com o gosotoso odor de pão de queijo. Cerrou os olhos, apenas ouvindo os barulhos que orquestravam seu dia. Sorriu. Como que para despertá-la de mais um devaneio, uma caneca apareceu em sua frente. Ela abriu totalmente os olhos e agradeceu pelo carinho, pegou-a daquela mão delicada e tomou um grande gole. Fechou seus olhos e soltou um murmuro de alegria, como conseguira viver tanto sem aquele ar tão agradável. Tão logo terminou de beber o líquido a ela oferecido, segurou aquela mão tão encantadora. Lhe mirou diretamente, como que a questionar se era isso mesmo que queria. Com um pequeno gesto, os lábios femininos lhe responderam, sem que palavras fossem ditas.

3.8.09

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- Não, você não está bem - a voz delicada se pôs grossa. Ela levantou o olhar da xícara para os olhos que a miravam de forma estranha.
- Estou sim, - sua voz estava calma, seu olhar perdido, ele notou - apenas estou pensativa. Esse mundo me enoja às vezes, - ela respirou fundo antes de completar a frase - quase todo o tempo.

Olhou para a enorme vidraça, ele acompanhou seu olhar até um jovem casal discutindo, logo ao lado uma criança gritava com a mãe, o pai acendia seu cigarro e virava-se de costas; enquanto isso um acidente ocorria pouco depois da calçada, um carro esportivo encostava em uma motocicleta, derrubando-a ao chão em fração de segundo. O povo se amontoava ao redor, cada um pelos seus motivos. Um barulho alto e um jovem de estatura média sai do carro, sua espressão revoltada demonstrava seus poucos vinte anos e maturidade infantil.

Aquele olhar masculino se encontrou com o dela, brevemente espantado, ela apenas sorriu e virou seu rosto para o interior do café. Ao focalizar-se ele a acompanhou, um casal sentado à mesa na área para fumantes, ela estava com os cotovelos apoiados na mesa, encarando-o com um olhar nada amigável enquanto lentamente erguia as sobrancelhas; ele a olhava com certa curiosidade, os ombros soltos e uma das pernas cruzadas em cima do joelho, tragou o cigarro e logo soltou a fumaça apenas escutando o que a mulher lhe dizia. Na mesa ao lado, dois adolescentes seguravam a mão um do outro, com olhar delicado e preocupado, o uniforme do colégio mostrava a pouca idade. Um pouco mais adiante, já no balcão, a garçonete mostrava sinais de cansaço, passava as costas da mão esquerda pela testa com frequência. Enquanto revirava os olhos a cada vez que se virava para um cliente, as olheiras a incriminavam, mostrando a insônia forçada da noite anterior.

Aquela voz calma e o olhar perdido se voltaram para ele, fazendo-o refletir em cada detalhe que seus olhos podiam captar.

- Imagine, mesmo que por um segundo não existisse nem céu, muito menos o inferno. O que seria do mundo se as pessoas nem ao menos temessem o julgamento final?