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Singelos momentos

A última vez que vi suas costas assemelhava-se a gotas de orvalho, descendo pela folha levemente amarelada do início da primavera. Abaixo das pontas enegrecidas e dos curtos fios desciam algumas gotas, que a chuva insistira em molhar-lhe a cabeça, rumo ao chão quiçá; entretanto seu corpo demonstrava certo pesar, os passos não eram os mesmos de outrora, pareciam-me cansados da batalha cotidiana. Senti-me com certa parcela de culpa pelo seu estado, havia sido agravado por uma discussão anterior a uma brusca mudança em sua vida. 
Era difícil para mim, tanto quanto para aquela pessoa que por tanto tempo havia dividido comigo não somente os melhores momentos, como também os piores. Inevitável, o fim, assim como o começo o foi, mas o amadurecimento nos trouxe uma visão de mundo e realidade fantástica, e por esse mesmo motivo a decisão tomada nos parecia ser a mais adequada. Eu não pretendia voltar aos mesmos lugares, tampouco me comunicar com as pessoas de sempre, queria adaptar-me à nova condição que a vida me impusera. 
Doía-me saber que para alguém tão frágil, seria tanto mais difícil que para mim, mas o remédio era único: conformar-me ou talvez arrepender-me por todos os longos anos que me ainda restavam. Virei-me de costas, era doloroso em demasia ver o corpo diminuindo ao longo daquela longa reta. Tentei não reagir ao ouvir sua voz chamar o nome pelo qual somente aquele timbre chamava-me: em vão. Mais rápido quanto um olho pode piscar, meu pescoço transladou e eu vi aqueles olhos negros aproximando-se de mim, derramando lágrimas tão densas quanto as gotas que a chuva deixava cair do outro lado do saguão. 
“Perdoa-me por não ter mais forças, por não saber como lidar com tudo isso”, uma lágrima desceu-me pelo rosto ao ouvir seus lábios dizerem tais palavras após um abraço tão forte. Como em quase todos os dias de nossa vida conjugal em que turbulências nos ocorriam, afaguei-lhe a nuca e assoviei uma canção ao seu ouvido, até que suas lágrimas já não mais caíssem. Seu coração pulsava com ânsia de reviver tudo aquilo que as situações nos impuseram, sussurros, gritos, beijos, toques, lágrimas e machucados. Nada disso era suficiente para nos enegrecer o dia se tivéssemos mútuo apoio, mas como seria agora que nossos rumos se separavam de forma tão brusca? 
Tentei ser racional, afastar-me daqueles braços delicadamente desenhados, novamente em vão. Como separar-me daquele calor que me acalentava os pensamentos de medos e receios. Meus olhos pareciam mais cachoeira, de sua boca ouvi-lhe questionar se não seria justo conosco e com nossa história ao menos tentarmos, nem que fosse de uma forma tão longínqua uma continuidade aos nossos fatídicos dias de insanidade. Ri, uma gargalhada que há muito se fazia presa em minha garganta, ao separar seu corpo do meu olhou-me diretamente como que aguardando uma resposta concreta. 
Sorri e falei, que enquanto eu vivesse seria dela, mas que as circunstâncias atenuariam cada vez nossos problemas, talvez em um futuro próximo poderíamos continuar de onde paramos, desde fôssemos sinceras com nossos sentimentos e atitudes. Beijei-lhe a têmpora, como em tempos remotos o fiz, apertei com carinho seus braços e falei que a vida continuava. Virei-me ao escutar a última chamada para o meu vôo, para o meu futuro. 
T.E.



PS: Gente, como eu detesto contos em primeira pessoa! Ô coisa difícil, mas saiu! Ae o/
PS: Imagem feita pela gloriosa bakanekonei (: